quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Ano Novo



Aos alguns dias do mês de Dezembro e outros de Janeiro de dois mil e onze, pelas poucas horas da noite e alguns minutos, realizou-se no Silveirinho uma reunião presidida por R. e com a presença de bué pessoal e com a seguinte ordem de trabalhos.

Uma acta.

Venho por este meio formular aquilo que foi postulado por todos nós, que é uma acta das actividades intensas que decorreram, e decorrerão, ao longo do ano novo e ao longo do novo ano. Passa a apresentar-se a excretora deste texto e de outros vindouros. Para manutenção do anonimato, meu e de todos, irei referir-me a nomes que talvez sejam conhecidos pelos seus detentores mas não pelos seus colegas de trabalho e chefes de departamento. Quanto ao meu anonimato, chamam-me Carol ou Carolândia, o que faz meu nome real fácil de adivinhar, mas em todo o caso eu prefiro o meu epíteto que há largos anos dura e pelo qual sou conhecida em diversos universos, paralelos ou perpendiculares. Esse nome é Lady. Olá a todos.

Tudo começou ainda antes de começar. O drama rolou e tornou-se irrelevante, por isso não falemos dele.
Depois foi o dia da ida, em grande excitação. Johnny apanhou-me em frente da estação dos comboios de Sete Rios, depois de eu ter esperado um bom quarto de hora ao lado de um cigano mal-cheiroso. Vi um antigo colega meu do teatro (e da primária também, dá para ser as duas coisas) a apanhar uma miúda mais baixa do que ele, mas não me apeteceu falar-lhe. Entretanto acabou a bateria do meu mp3 e a boleia chegou.  No carro já vinham, além de seu condutor, Ricky, S. e DJ. Avançamos brandamente até Aveiras. Aveiras é uma terra interessante, pois nada mais tem além de uma estação de serviço. À sua volta, apenas o vazio. Constatei esse facto quando chegámos lá. Esperámos circa uma hora por mais gente e falámos de um filme pavoroso que será referido mais tarde. Chegando toda a gente, R. apresenta-nos o seu novo Ipad, onde eu obrigo toda a gente a ouvir a música do PUDDI PUDDI, que é um pudim gigante para toda a família. Ah sim, talvez deva fazer notar que neste grupo de pessoas somos todos uns irresponsáveis, por isso sempre que há esperas há fumo. Isto explicará o consequente do resto da viagem.

Ao avançarmos reparamos que há imensos arco-íris. Primeiro vimos um, o que é normal. Depois vimos outro, mais extraordinário. E depois outro. E depois outro a reproduzir-se por gemulação. Constatámos portanto que estávamos debaixo do arco-íris e cantámos. Depois vimos um arco-íris ao contrário e saímos de debaixo dele.

Chegando a Coimbra fomos às compras. Ninguém seguindo os conselhos sábios fez uma lista, por isso entrámos à desvairada pelo Forum Coimbra afora, não sei se Continente se Feira Nova ou mesmo Pingo Doce crescido, e começamos a por cervejas dentro do carrinho. Eu, Ricky e S. decidimos procurar local para fumar, o que encontramos depois de uma grande volta. Assisto a homens Chineses a falarem em Chinês. Se fossem Japoneses teria compreendido, mas a Ásia é um continente de muitas nações. Voltamos ao supermercado e localizamos os nossos companheiros. O carrinho que antes tinha cerveja, agora tem cerveja, vodka, whisky, Gazela e batatas fritas. Bacano. Ocorrem certos atritos momentâneos e vamos embora.
Como vamos algo adiantados, decidimos parar antes na casa do Primo da Celeste, que nos recebe e tem um cão fofo. Cumprimentamos família, o que foi de certa forma estranho, e esperamos por Celeste, que se apresenta carregada de sapateiras. Oferecemo-nos para transportar alimento para casa, pois ela havia decidido congratular-nos com um enorme jantar. Infelizmente era arroz de pato, e eu não como pato, porque os patos são fofinhos e eu não como coisas fofinhas. Antes que seja questionado, os vitelos não são fofinhos, cheiram mal. Conheço muitos.

Instalamo-nos, fico com o quarto que antes me havia sido atribuído, em tempos quando eu era amiga da Diana. Que nostálgico. O quarto tem uma fotografia algo sinistra dos dois gémeos, diferentes mas ainda assim bastante iguais, sorte que agora são completamente distintos ou seria um enorme atrofio cerebral.

Algo se passou entre este momento e o outro, e creio que envolveu comer torradinhas com sapateira, atum, delícias e/ou azeitonas. Estava bom. Talvez tenha sido por esta altura que Johnny foi fazer a sua química (um verdadeiro alquimista, este homem) e a tenha trazido para baixo. Consumimos a Alquimia. Antes disto Ricky já tinha explorado Narnia, tendo encontrado um armário e outro armário (onde passou todas as noites em contemplação), guardando avidamente as chaves do primeiro armário para que mais ninguém entrasse em Narnia. Ser o guardião de Narnia é deveras trabalhoso.

Entretanto veio-se a saber que não éramos nós os únicos consumidores de moderadas doses de matéria ilegal, o que nos deixou a todos um pouco mais felizes ainda. Talvez tenha sido por aqui o primeiro passeio, mas não tenho a certeza.

Sabe-se que entretanto bateu a meia-noite. Fomos para dentro, excepto Ricky, onde nos abraçámos em celebração, abrimos champanhe e ficámos a compreender a potência da felicidade, à medida que soavam os Queen e gritávamos, gritávamos, gritávamos tanto, mas era apenas alegria, apenas felicidade.

Há mesmo quem tenha visto Johny e T. abraçando-se, mas terá porventura sido ilusão de óptica, alucinação ou efeito da droga, pois isso é, certamente, impossível. As coisas impossíveis raramente acontecem.

Ricky manteve-se ausente deste momento de felicidade, pois sentia a felicidade de toda a gente, ao mesmo tempo, dentro de si e, assim sendo, escusava de se levantar para partilhar. Há estes momentos, em que a partilha é tão profunda que chega a abraçar quem não está nela

Depois fizemos passeios. Não recordo exactamente a ordem deles. Sei que Ricky não compareceu no último, pois estava dentro do seu armário, e sei que os seguintes items se passaram durante os tais passeios:

  • Vimos o hospital dos zombies, edifício assustador entre a igreja e outra casa, de feições abandonadas e paredes gastas. As cortinas nas janelas abanavam às vezes e quase que podíamos ver a mão gangrenosa a abri-las e as órbitas sem olhos a mirar-nos por trás delas. Eu própria cheguei a visualizar o Leon a correr à frente dos zombies da casa, quiçá olhando pela janela também com os seus zombies, como os velhos à janela. Continua tudo igual desde que morreste? Continua, talvez cheire pior.
  • Ricky e S. decidem ir falar a um senhor que estava a estacionar o carro em frente da casa-toda-iluminada. Apesar dos meus esforços, compostos por gritos e ameaças, não os consegui demover. No entanto, por estranho que pareça, o senhor da casa-toda-iluminada não lhes bateu com uma pá nem chamou a polícia. Em vez disso, deu dois beijinhos a cada um e disse “então estão por cá?” Celeste confirmou depois disso que o senhor não os conhecia de parte alguma. Deveria ser efeito da aguardente conimbriquense, que é uma maluca.
  • Ricky decide perguntar no café mais próximo a que horas abre a igreja. Diz que é às três para a missa do ano novo, mas que querendo lhe vão buscar a chave para tirarmos fotografias lá dentro. Eu por mim penso que fotografias poderemos tirar dentro de uma igreja que é meio quadrada (à frente) e meio redonda (atrás). Os zombies do hospital olhavam para nós.
  • Andamos por baixo do IC3
  • Andamos apenas
  • Tentamos tirar uma fotografia de grupo. S. recusa-se, fazendo grandes dilemas sobre a explicação. Percebemos que tem uma relação estranha com as amigas, por isso ainda bem que ela não está com as amigas e está connosco. Ao contrário das amigas nós só tiramos fotos de grupo para se saber que somos muitos e onde estamos, por isso não faz mal tirar. Muitas delas nem sequer vão parar à internet, é apenas para recordar com a caixinha mágica dos vídeos do Johnny.
  • Começam a doer-me os quadricipes femorais.
  • DJ tem um ataque de indisposição e liberta a sua indisposição sob forma líquida. Não olhei com muita atenção, mas parece ter sido um acto de libertação absolutamente necessário, natural e encantador. Nada fazia mal e tudo era encantador.
  • Passamos várias vezes pela casa-toda-iluminada
 Entre dois destes passeios, creio que entre o segundo e o terceiro, ocorreram revelações, que passarei a revelar. No entanto antes de as revelar tenho de explicar o estado em que me encontrava. Era um estado de aceleração virtual em que tudo, absolutamente tudo, era encantador, maravilhoso e inexplicavelmente amigo. Por vezes falava, falava de tudo, mas quando parava de falar era como se todo o conhecimento do mundo estivesse em mim, tão rapidamente que era impossível explicar. Como se abrisse uma porta, como a abrem os alquimistas quando cometem esse tabu que é tentar ressuscitar uma pessoa que, evidentemente, já morreu, seja mãe morta em epidemia ou filho abortado por doença materna, e por trás dessa porta estivesse o conhecimento do mundo, em janelas, em molduras, em pequenos episódios, que corriam todos à minha frente, ou seria eu que corria em frente deles, e todos juntos faziam todo o sentido, um sentido universal, um sentido que era apenas isso. Um sentido que muitas pessoas resumem como 42, mas que eu entretanto não posso explicar porque, entretanto, já me esqueci. Enfim, ocorreram revelações.

Assim, revelei a DJ que o meu talento pagão é encontrar o lado mau das pessoas, e que o lado mau dele é ser um chato. Ele por sua vez revelou-me que só é chato com as pessoas de quem gosta, o que é claramente positivo, porque isso significa que gosta de mim. Revelei a Andrea (que tinha chegado de Tomar, mais tarde, com o Wolverine) o que ela já sabia, que gosto muito dela e que a admiro profundamente, e ela quase que chorou e me bateu revelando que odiava a admiração que tinham por ela, e assim eu prometi que passaria a não exigir tanto dela. Mas continuará num pedestal até que me apeteça, porque as pessoas loiras ficam bem em pedestais. E mais revelações ocorreram, mas estas foram as mais importantes. Há mesmo quem tenha telefonado à família. Devia tê-lo feito também, mas seria completamente contra a minha natureza. À uma e quarenta e sete da manhã lembro-me que tenho de mandar uma mensagem à minha mãe, já tinha recebido uma dela à meia-noite e três, há mesmo quem não tenha mais nada com que se preocupar. Felizmente não me esqueci de tomar as minhas Meds, que impedem que me caia o cabelo e que tenha ataques de raiva violentos dirigidos a pessoas ou objectos, ajudando também a estabilizar a minha paranóia. É extraordinário como em toda esta noite nunca senti nenhum momento de paranóia, eu que sou extremamente paranóica. Estava em paz com o Universo e, mais importante que isso, o Universo estava em paz comigo. Quando o mundo nos ama de volta, não há melhor sensação que essa.

Durante todo este tempo, R. manteve-se no mais profundo silencio, tendo Ricky se convencido que uma esfregona rectangular era o ceptro de Narnia e que, detentor do ceptro, ele era o guardião de Narnia. O Peru veio estranho da sua viagem à terra do gelo, e demonstrou-se muito chato em relação a nós em diversas ocasiões. Foi difícil de o convencer a ir-se embora, e de o convencer que a sua buba de whisky não estava a acompanhar a nossa moca de água. No entanto, Chico Norris teve a soberba capacidade de nos acompanhar a noite toda, apenas movido a etanol.

Faça-se notar que algures durante este tempo Johnny voltou a aparecer, desta vez com uma panaceia líquida, qual Fleming ou Elric que, mais que médicos, médicos o eram da alma daqueles que imaginam em demasia.

Entretanto eram sete da manhã, doíam-me os quadricipes e os tricipes femorais e sentia algo no meu cabelo, uma espécie de substância plástica, como o plástico arrancado do maço de tabaco que por vezes voa e se cola aos dedos, à cara, aos cabelos e ao que mais vier a jeito. Decidi ir dormir, na esperança que o plástico se soltasse e caísse.

Dormi como um anjo, completamente apagada, e acordei ainda acelerada às nove da manhã. A música da sala ainda soava, por isso esperei que a festa ainda estivesse a decorrer. Mas nada, tudo vazio. Apenas o Primo da Celeste a arrumar coisas e T. enroscado no sofá, abandonado mas ainda assim ronronando. Também lhe havia revelado que ele é um fofo, diga-se de passagem. Na realidade, invadi o quarto dele com Ricky para nos sentarmos nas cadeiras de praia que lá estavam na escuridão, e por isso falei com ele. As pessoas podem não gostar dele de vez em quando, mas eu acho que tem muito mais dentro de si do que aquilo que passa através dos outros. Pelo menos gostei de falar com ele nessa ocasião e senti que agora o conheço melhor. Pelo menos melhor do que conhecia. Enfim, enrosquei-me no outro sofá depois de tomar banho e comer um pão, e lá fiquei, num estado acordado mas adormecido – tal como havia acontecido da outra vez que tinha estado nesta casa, mas desta vez muito mais lógico e com todo o sentido. Entretanto o plástico do meu cabelo não saíra. Após investigação criteriosa venho a descobrir que são dosi fios de cabelo que estão dentro do meu ouvido.

As pessoas vão acordando pela tarde afora, e ainda estamos todos um pouco sob os efeitos da noite passada. Sem ressaca, sem nada, todos felizes, sujos e contentes, bebemos mais e fez-se uma descoberta, uma descoberta que veio a dar a criação destas actas. Descobriu-se, por associação de ideias, que eu sou uma Amiga Imaginária.

Primeiramente estávamos a falar dos nossos amigos imaginários, embora nunca tenhamos chegado a falar de como é que eles desapareceram, e eu confessei que não tinha tido um amigo imaginário, mas sim muitos. Na realidade, uma série de universos paralelos de amigos imaginários. Ao que eu me questionei se, na verdade, seria eu que era amiga imaginária de todos esses amigos imaginários. Foi quando os meus amigos me revelaram que eu era a amiga imaginária deles.

E aí tudo fez sentido.

Sobretudo o facto de eu necessitar de imensa atenção para não me passar da caixa dos pirolitos, coisa que acontece frequentemente quando bebo, fumo, como, tacteio, cheiro ou ouço. Quando deixam de pensar em mim, eu começo a desaparecer.

E assim ficou combinado que a Amiga Imaginária passaria a escrever as actas das saídas, para que em cada Ano Novo as levássemos escritas, para inspirar e para fazermos cada vez melhor todos os anos. Mas eu sou uma pessoa do futuro, por isso coloco-as desde já num blog, para que todos os que lá estiveram se lembrem sempre do que é que se passou e para quem não lá esteve se questione sobre o que é que se passou.

Depois fomos para cima ver O Rei Leão. Descobrimos que DJ sabe as falas todas do filme e que Peru é o Scar, enquanto Chico Norris se tripava em absoluto e eu chorava enquanto Mufasa morria e Simba e Nala se encontravam debaixo da cascata (ele é o bad boy, como elas gostam) e, por alguma razão, parece que passámos à frente a parte em que o Timon veste uma saia e dança o Hula!, porque não me lembro de ver isso apesar de querer imenso cantar isso. Depois Celeste entrou no quarto e disse que se vinha deitar, por isso fomos dormir também.

No dia seguinte, ou talvez tenha sido neste dia, vimos filmes pavorosos na caixa mágica do Johnny, com gatinhos a cair, pessoas a cair, bocas pornográficas, homens a beber suor de outros homens e pinheiros a cair também.

Depois fomos embora e eu dormi.

No dia seguinte tive aula, também dormi.

E, nada mais havendo a tratar, foi lavrada a presente acta que, depois de lida e aprovada, vai ser assinada pelo presidente e por mim, a Amiga Imaginária, na qualidade de secretária, que a redigi.


P.S. Pois me havia esquecido. Para este novo ano desejo muitas felicidades e muitos anos de vida, talvez mudanças radicais. Talvez até perca as minhas orelhas, mas isso é outra história.

2 comentários:

  1. Muito bom, devias continuar com estas actas *

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  2. Está muito bem redigida e nada tenho a alterar, não falta qualquer pormenor.

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